quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Cinema: a vida e a carreira de Guillermo del Toro

Guillermo del Toro e seus queridos e terríveis monstros
Por Anthony M. D. Muniz

"Gosto de atores que são bons em pantomima e que conseguem transmitir
muito mais pela presença e atitude do que pelo diálogo." - Guillermo del Toro.

Um artista quando está procurando referências para compor uma obra nova, Guilherme del Toro busca os incontáveis elementos que o cercam e que constroem sua individualidade. Pensando nisso, nada mais natural que essa ideia se aplique, também, a um cineasta.

Guillermo del Toro no Festival de Sitgs, 2017.
Fonte: Wikipedia,
Por causa disso, quando se fala da carreira de Guillermo del Toro, os elementos que marcam sua obra (os monstros, a violência e os cenários fantásticos) podem ser facilmente identificados nos anos de sua formação, ou seja durante os anos de sua infância e adolescência.

Nascido na cidade de Guadalajara, no México, em 9 de outubro de 1964, Guillermo del Toro Gómez cresceu numa família financeiramente bem estabelecida, com seus pais, irmã e avó. Sua convivência em casa era boa e amistosa, mas as presenças femininas de sua mãe e avó foram determinantes para a construção do artista que ele seria um dia. Sua mãe era leitora de tarô (por hobby) e uma poeta amadora. O envolvimento de sua mãe com a arte o ajudou a expandir sua sensibilidade, principalmente levando em consideração a extrema timidez demonstrada em seus primeiros anos de vida. Sua avó representou uma outra faceta em sua vida, já que era, apesar de amorosa, extremamente religiosa e controladora, o que foi responsável por causar nele uma forte impressão, graças aos muitos símbolos reproduzidos pelo catolicismo (e às incorporações pagãs da religião católica). Isso fez com que crescesse nele um profundo interesse pelas histórias, figuras, criaturas e arquétipos míticos de diferentes origens.

Junto a esses interesses, Guillermo cresceu sob grande influência da literatura (especialmente do gênero gótico), do cinema (com os filmes de horror e de monstros), da televisão (com os animes e tokusatsus japoneses, que o influenciariam em um projeto particular no futuro) e do universo dos quadrinhos e das revistas pulps. Acabou, também, muito influenciado pelas obras de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Mary Shelley, Akira Kurosawa, Kaneto Shindô, Jean Cocteau, George A. Romero, Mario Bava entre muitos outros. O contato com todos esses materiais não só aumentou seu escopo cultural, como também, foi crucial para que ele desenvolvesse contato com a língua inglesa, já que muitas das revistas e livros aos quais ele tinha acesso eram disponibilizados apenas em inglês.

Ainda jovem, já decidido que ia trabalhar com cinema e televisão, ele procurou aprender o funcionamento dos setores de desenho, produção, caracterização e maquiagem. Com uma clara aptidão para o ofício, ainda nos anos 1980, foi cofundador de uma empresa especializada em maquiagem para filmes de terror chamada Necropia. A partir daí, começou a galgar os primeiros passos na carreira de diretor. Foi assim que, após ter feito uma série de curtas-metragens no decorrer da década, ele conseguiu dirigir seu primeiro longa-metragem, mas isso já perto dos 30 anos. É, então, lançado o filme "Cronos", em 1993.

Em "Cronos" acompanhamos a vida de um gentil homem idoso que começa a apresentar comportamentos estranhos após ter contato com um objeto metálico muito peculiar. Nesse primeiro filme ele já apresentava as características que se tornariam facilmente reconhecíveis em suas obras: os elementos de múltiplas culturas e mitos, o terror e a violência produzidos pelo próprio homem e o horror como ponto de identificação e representação da beleza.

Logo em sua primeira empreitada, del Toro passou a experimentar as dificuldades de se fazer um filme. Ele fez questão de que o ator americano Ron Perlman estivesse no elenco principal e, para isso, ele precisou que o orçamento da produção fosse maior que o previsto para pagar o cachê do ator. Mas o que ele não esperava é que o produtor do filme, que havia prometido conseguir o dinheiro necessário, abandonou o projeto, fazendo com que o ator ficasse sem o seu devido salário. Mesmo encontrando-se nessa situação constrangedora, o diretor se surpreendeu com o voto de confiança que Ron Perlman depositou nele, dizendo que tinha certeza do sucesso que del Toro teria nos anos seguintes, e acertou em cheio.

O filme foi um grande sucesso, tanto de bilheteria quanto de crítica, o que garantiu que del Toro pudesse continuar sua iniciante carreira. Mas, apesar do sucesso, ele começou a perceber que o cinema mexicano dos anos 1990 não poderia comportar as suas ambições como cineasta devido a questões orçamentárias e, portanto, decidiu mudar-se para os EUA e arriscar a continuação de sua carreira em Hollywood.

Nos EUA, acabou se deparando com um cenário muito difícil e competitivo, tanto que levou anos até que conseguisse produzir seu segundo longa-metragem, lançando-o apenas em 1997. Sua primeira produção feita em território estadunidense foi "Mutação", com Mira Sorvino, Norman Reedus e Josh Brolin no elenco. A produção foi extremamente conturbada, com diversas diferenças criativas entre o diretor e os produtores, que acabaram demitindo-o durante as filmagens. Graças a insistência do elenco pelo retorno de del Toro, pois acreditavam e apoiavam a visão do diretor para o filme, ele pode retornar (a contragosto dos produtores) para a conclusão do filme.

As outras experiências em Hollywood como um diretor inexperiente e imigrante fizeram com que ele desejasse trabalhar fora dos EUA. Por isso, acabou decidindo realizar sua próxima produção na Espanha, onde poderia voltar a desenvolver um projeto em sua língua materna. Foi então que, em 2001, lançou "A Espinha do Diabo".

Em "A Espinha do Diabo" acompanhamos o personagem Carlos, um garoto de 12 anos de idade que, durante a Guerra Civil Espanhola, é abandonado em um decadente orfanato (muito distante das grandes cidades) onde começa a vivenciar momentos de terror sobrenatural ao descobrir a existência do fantasma de um antigo órfão que morreu de maneira desconhecida. É a partir dessa produção que del Toro começa a demonstrar suas habilidades narrativas com mais clareza e astúcia, apresentando personagens memoráveis e momentos realmente arrepiantes. Isso sem falar das claras relações entre a brutalidade e a violência banalizada com a predominância do regime e da cultura fascista daquele momento na história da Espanha. Uma curiosidade interessante é que o filme foi produzido por Augustin Almodóvar (irmão do diretor Pedro Almodóvar) por meio da produtora espanhola El Deseo.

Com o sucesso do filme, del Toro foi convidado para voltar a trabalhar em Hollywood e foi contratado para dirigir "Blade 2", sequência do filme original sobre o icônico personagem caçador de vampiros,. "Blade 2" foi lançado em 2002 e se tornou um sucesso de bilheteria, o que garantiu a oportunidade de trabalhar em seu projeto seguinte. Foi então que ele se envolveu em um de seus filmes mais reconhecíveis: "Hellboy" (2004) baseado no famoso gibi criado por Mike Mignola, que aborda a história de um demônio que, após ser conjurado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, é resgatado e adotado ainda criança por um jovem soldado americano que o cria até que se torne um defensor contra as forças das trevas para o governo estadunidense. Com uma produção de extrema qualidade e personagens muito bem desenvolvidos, o filme conquistou uma legião de fãs e foi um sucesso de crítica.

Após "Hellboy" e seu grande sucesso, o diretor conseguiu orçamento para o filme mais reverenciado da sua carreira. Portanto, ele decide voltar para a Espanha a fim de produzir "O Labirinto do Fauno", lançado em 2006. Ambientado (novamente) durante a Segunda Guerra Civil Espanhola, com o país sob o domínio do tirânico Francisco Franco, o filme conta a história de Ofélia, uma jovem garota que precisa se mudar para uma casa nova após sua mãe (que está grávida) ter se casado com o cruel Capitão Vidal. Pelo bosque ao redor da grande casa ela encontra um estranho labirinto, onde uma misteriosa criatura (o Fauno) diz que ela é a princesa perdida de um reino mágico, mas, para retornar, ela precisa cumprir uma série de tarefas. O filme conquistou a crítica do mundo inteiro, por apresentar um conto de fadas envolvente que, combinando elementos extremamente adultos com a dubiedade fantástica da narrativa, proporciona uma experiência marcante e envolvente. O longa marcou pela construção das ambientações que não são apenas convincentes, mas que auxiliam, com perfeição, na progressão da narrativa. Isso sem falar das fantásticas criaturas apresentadas no filme (interpretadas pelo brilhante Doug Jones). A qualidade da produção garantiu (além de indicações ao Oscar nas categorias de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Roteiro Original e Melhor Trilha Sonora Original), três Oscars pela Direção de Arte, Direção de Fotografia e Maquiagem.

Essa foi sua última produção feita na língua espanhola (pelo menos até o momento em que esse texto foi escrito). Depois disso ele se dedicou exclusivamente a produções de língua inglesa. Del Toro trabalhou em diversos projetos, tanto no cinema quanto na televisão, principalmente como produtor, mas os trabalhos que pretendia dirigir lhe trouxeram diversas barreiras para que ganhassem o sinal verde. Mesmo assim, ele conseguiu que alguns projetos saíssem do papel. Para o cinema ele dirigiu uma sequência de "Hellboy" (considerado, pela crítica, melhor que o primeiro filme e, ainda que não tenha repetido o mesmo desempenho nas bilheterias, foi um sucesso de vendas em homevideo) e o filme de ação "A Colina Escarlate" (outra homenagem, mas dessa vez aos romances góticos clássicos que rechearam sua juventude). Todas essas produções foram feitas entre os anos de 2007 e 2015, mas foi apenas nos anos seguintes que ele vivenciaria seus anos de maior sucesso.

Ele lançou, em 2017, "A Forma da Água", que marcou seu maior sucesso até então. O filme se passa nos EUA, na década de 1960, e conta a história de amor entre uma faxineira surda, chamada Eliza, e um estranho e misterioso homem-anfíbio que foi sequestrado pelo governo americano. O filme representou uma nova fase na carreira do diretor por causa da repercussão muito positiva. Além de ter tido uma grande bilheteria (uma das maiores de sua carreira), o filme conquistou uma longa lista de prêmios, desde o prestigioso Leão de Ouro (prêmio mais alto do Festival de Veneza de Cinema) até quatro Oscars (incluindo de Melhor Filme e de Melhor Direção para del Toro). O sucesso desse filme permitiu que uma nova chama reacendesse em seu trabalho dando-lhe a possibilidade de partir para novos projetos.

Em seguida, del Toro lançou, em 2021, o filme "O Beco do Pesadelo", um complexo drama sobre um ilusionista que, após se envolver em algumas situações, está perdendo aos poucos sua humanidade (filme que, apesar da repercussão positiva, teve uma bilheteria baixíssima por causa das limitações nos cinemas causadas pela pandemia).

Sua produção seguinte, e mais recente, foi uma nova adaptação em stopmotion de Pinóquio, trabalho que levou mais de 10 anos para ser feito, pois havia sido rejeitado por diversos estúdios até ganhar sinal verde da Netflix para ser produzido. Baseado no livro de 1883 escrito por Carlo Collodi, a história aqui é situada durante os anos da Segunda Guerra Mundial, sob o regime fascista de Mussolini, na Itália, e acompanha a vida de Geppetto, um velho marceneiro que, após uma noite de bebedeira por ter perdido seu filho em um bombardeio, cria um boneco que, misteriosamente, ganha vida. O filme foi lançado no final de 2022 e marcou mais um sucesso na carreira do diretor, faturando, inclusive, o Oscar de Melhor Animação.

Fonte: imagem da Netflix para a Variety.

Agora, com uma série de projetos em desenvolvimento para os próximos anos, Guillermo del Toro está desenvolvendo uma nova adaptação do romance homônimo de Mary Shelley, "Frankenstein", do qual é fã desde a juventude. Não há dúvidas de que há muitos outros monstros terríveis a caminho.


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