segunda-feira, 13 de maio de 2024

Cinema: a vida e a carreira de Ingmar Bergman

Ingmar Bergman: entre a memória e a arte
Por Anthony M. D. Muniz

"Filme como sonho, filme como música. Nenhuma arte passa pela nossa consciência como o filme, e vai diretamente aos nossos sentimentos, às profundezas das salas escuras de nossas almas". Ingmar Bergman

O que faz um diretor de cinema ser considerado um gênio e mestre de sua arte? Bom, Ingmar Bergman pode ser um dos melhores exemplos para se encontrar uma resposta a essa pergunta.

Ingmar Bergman é uma figura icônica no mundo do cinema, reconhecido por suas contribuições significativas para a arte cinematográfica. Em 1918, ao norte de Estocolmo, na cidade de Uppsala, na Suécia, nasceu e cresceu um ainda jovem Ernst Ingmar Bergman, o segundo de três filhos que integravam uma família abastada.

Filho de Erik Bergman, um pastor luterano, e de Karin Åkerblom, uma burguesa, ele viveu seus primeiros anos de vida rodeado de muito conforto financeiro, conforto esse que não correspondia com outros aspectos de sua vida como, por exemplo, os longos períodos de enfermidade que ficaram marcados em sua infância. Outro aspecto importante também foi o fato de que sua infância foi marcada por momentos de severidade religiosa, em que episódios de castigo, que iam desde bofetadas e chicotadas à maus-tratos de natureza mais psicológica. Esses momentos de repressão marcaram profundamente a personalidade de Bergman e fizeram-se muito presentes em toda a obra do artista. Ainda criança, criou um pequeno teatro de fantoches, confeccionados por ele mesmo, onde iniciou seus primeiros passos de criatividade artística.

Ingmar Bergman num set de gravação nos anos 1960. Fonte: https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/films/features/ingmar-bergman-documentary-films-a-year-in-the-life-seventh-seal-wild-strawberries-sweden-a8746426.html

Esse interesse constante pela arte fez com que escolhesse estudar Letras e História da Arte na Universidade de Estocolmo e, assim, iniciou sua produção como diretor de teatro universitário, função que desempenhou até 1942. Após essa breve experiência, começou a trabalhar como auxiliar na produção de peças teatrais no Grande Teatro Dramático de Estocolmo. Mas foi uma montagem sua, ainda nos seus anos no teatro universitário, que ajudou a colocar seu nome em destaque. Ainda em 1942, a sua montagem de "A morte de Gaspar" foi assistida pela produtora Svensk Filmindustri, que acabou contratando-o no ano seguinte para trabalhar em seu departamento de roteiros. 

No mesmo ano em que iniciou sua carreira como diretor de cinema, Bergman já havia iniciado seus trabalhos como diretor artístico no Teatro Municipal de Helsingborg, onde trabalhou de 1944 a 1952. Em 1944, enquanto trabalhava nesse teatro, lançou seu primeiro longa-metragem chamado "Tortura". Apesar de se seguir uma filmografia muito prolífica, chegando a lançar em alguns anos mais de um filme por ano, foi somente em seu lançamento de 1955, intitulado "Sorrisos duma noite de verão" que ele começou a vislumbrar o sucesso e o reconhecimento em nível internacional, sendo muito bem recebido pelo público e pela crítica em sua exibição no Festival de Cannes daquele ano. Ainda assim, tendo recebido muitos louros pela produção deste filme, foi somente no trabalho seguinte que seu nome se elevou ao dos grandes artistas da sétima arte.

Em 1957, Bergman apresentou uma de suas produções mais conhecidas e aclamadas: "O sétimo selo". O filme conta a história de um cavaleiro que retorna das Cruzadas após dez anos e se depara com uma Europa devastada pela peste negra. Em meio a uma série de acontecimentos, ele é confrontado pela figura da morte e, em uma tentativa de escapar do destino final, a desafia para uma partida de xadrez com sua vida (ou morte) como recompensa pela vitória. As reflexões trazidas ao público fizeram desse filme um marco na história do cinema, pavimentando a percepção de que o cinema não só poderia abordar profundamente temas existenciais e filosóficos, como também deveria ser considerado uma forma de arte tão complexa quanto as outras.

Cena do filme “O Sétimo Selo” (1960). Fonte: https://diariodorio.com/mostra-centenario-ingmar-bergman-chega-ao-rio-de-janeiro-com-filmes-ineditos/

Esse sucesso sacralizou seu nome entre os grandes diretores de cinema de todos os tempos e marcou uma série de produções magistrais que solidificaram ainda mais sua filmografia. Em seu filme seguinte, "Morangos silvestres" (1957), ele apresentou uma reflexão nostálgica sobre a vida e como o peso que as escolhas feitas podem marcar, ou mesmo condenar, os anos derradeiros de uma pessoa.

Já em "Persona" (1966), o diretor mergulhou em uma experiência surrealista e psicológica no mundo da identidade e da dualidade. Nesse filme ele aborda como duas personagens, uma atriz renomada em crise de personalidade e sua enfermeira, se veem encurraladas ao perceberem que estão se tornando uma única persona. Um fato interessante sobre essa produção é que a inspiração para o diretor veio ao perceber que as atrizes Bibi Andersson e Liv Ullmann (ambas protagonistas desse filme e que já haviam trabalhado com ele) eram estranhamente parecidas e que isso poderia render uma história.

Além de seu trabalho como diretor, Bergman também foi um prolífico escritor e produtor, colaborando com alguns dos maiores talentos do cinema sueco e internacional. Sua influência se estendeu muito além das fronteiras da Suécia, inspirando cineastas em todo o mundo e deixando um legado duradouro na indústria cinematográfica.

Outra produção marcante de sua filmografia foi sua obra com maiores elementos autobiográficos: "Fanny e Alexander". Lançado inicialmente como filme em 1982 e, posteriormente, como minissérie para televisão em 1983, o longa-metragem conta a história de uma família que precisa lidar com a perda de um membro importante, o pai, e o turbilhão de emoções que se seguem a partir disso, especialmente para Alexander ("representação" fictícia de Bergman na infância) que, após a morte do pai, passa a ver fantasmas e precisa lidar com a real (e terrível) figura de seu novo padrasto. Baseado em fragmentos de sua vida, Bergman trouxe aqui uma das mais marcantes obras sobre infância, fantasia e memória da história do cinema. O filme marcou a crítica e o público ao apresentar uma história envolvente e ornamentada de uma qualidade de produção exuberante, chegando a vencer 4 Oscars, incluindo de Melhor Filme Estrangeiro.

Ingmar Bergman se tornou uma das maiores referências para a arte cinematográfica e, apesar de ter deixado um grande legado como escritor e dramaturgo, ele mesmo reconheceu a força extraordinária e singular que apenas o cinema é capaz de alcançar.

Apesar de sua morte em 2007, o impacto de Ingmar Bergman no cinema continua a ser sentido até os dias de hoje. Sua habilidade em capturar a essência da condição humana, aliada à sua maestria técnica, garantiu-lhe um lugar eterno entre os grandes mestres do cinema. Ele foi uma daquelas figuras capazes de inspirar outros gênios de sua arte, e continua inspirando

Cinema: a vida e a carreira de Glauber Rocha

Glauber Rocha, o cineasta brasileiro
Por Anthony M. D. Muniz

"O Cinema Novo esteve ao lado da utopia brasileira. Se é feio, irregular, sujo, confuso e caótico, é também belo, desarmônico, luminoso e revolucionário". Glauber Rocha

Glauber Rocha, um dos mais renomados diretores de cinema do Brasil é um dos principais representantes do movimento do Cinema Novo, deixou uma marca permanente na história da cinematografia brasileira. Sua vida e carreira são um testemunho de criatividade, engajamento político e uma busca incansável por uma identidade cinematográfica autenticamente brasileira.

Nascido em Vitória da Conquista, Bahia, em 14 de março de 1939, Glauber cresceu em um ambiente culturalmente rico e politicamente agitado. Mudou-se para Salvador com sua família em 1947 e, desde cedo, demonstrou interesse pelas artes e pelo cinema. Ainda em sua juventude conheceu o cineasta Luiz Paulino dos Santos e, assim, pode se envolver pela primeira vez na produção de um curta-metragem em "Um dia na rampa" (1955). Em 1959 iniciou seus estudos na Faculdade de Direito na hoje conhecida como Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Glauber estreou como diretor em 1959, com os curtas-metragens "Pátio" e "Cruz no pátio" e essa experiência foi crucial para os rumos que sua vida tomaria desde então. Logo após, em 1961, ele abandonou o curso de Direito para trabalhar como crítico de cinema. Foi nesse momento que, se casou com a atriz Helena Ignez.

Seu primeiro longa-metragem, "Barravento" (1962) já demonstrava sua abordagem única e provocativa. Em seus filmes, Glauber buscava retratar a realidade brasileira de uma maneira não convencional, utilizando técnicas inovadoras e estilísticas que desafiavam as convenções cinematográficas da época.

Um dos filmes mais emblemáticos de Glauber é "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (964), uma obra-prima do Cinema Novo que explora temas como religião, violência e opressão social no nordeste brasileiro. O filme foi lançado no Festival de Cannes (concorrendo à Palma de Ouro) e recebeu aclamação internacional, solidificando a posição de Glauber como um dos diretores mais importantes do Brasil. Sua linguagem visual inovadora e seu estilo narrativo ousado influenciaram gerações de cineastas em todo o mundo.

Cena com o protagonista do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964). Fonte: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2022/05/03/interna_cultura,1363772/deus-e-o-diabo-na-terra-do-sol-sera-lancado-pela-segunda-vez-em-cannes.shtml

No entanto, apesar de seu talento e reconhecimento internacional, Glauber enfrentou desafios em sua carreira, incluindo a censura do regime militar brasileiro, que via suas obras como subversivas. Ele passou períodos no exílio, mas continuou a produzir filmes provocativos e visionários como "Terra em transe" (1967) entre outros. Este filme se passa em Eldorado, um país fictício da América Latina, e segue as vicissitudes de um intelectual idealista, Paulo Martins, que se envolve nas intrigas políticas e nas lutas de poder de sua nação. Glauber utiliza uma narrativa não linear e uma linguagem visual arrojada para retratar as complexidades políticas e sociais do contexto latino-americano. O filme é uma crítica contundente às elites corruptas, ao imperialismo estrangeiro e à manipulação da mídia, enquanto examina as contradições e compromissos morais enfrentados por aqueles que buscam mudança.

A cinematografia de "Terra em transe" é marcada por imagens icônicas e simbolismo poderoso, com destaque para os contrastes entre luz e sombra, os enquadramentos intrincados e a edição dinâmica. A trilha sonora, composta por Sérgio Ricardo, contribui para a atmosfera intensa e dramática do filme.

O título "Terra em transe" evoca um sentido de tumulto e instabilidade, refletindo não apenas as convulsões políticas do enredo, como também a condição turbulenta de toda uma região. O filme é uma reflexão profunda sobre os dilemas enfrentados por países em desenvolvimento, presos entre tradição e modernidade, nacionalismo e globalização, idealismo e pragmatismo.

Em "O dragão da maldade conta o santo guerreiro" (1969) ele apresenta uma sequência para os eventos de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), em que Antônio das Mortes deve voltar à ação após matar o último dos cangaceiros há 29 anos, quando surge um novo bandido, que acabará por se revelar um idealista e o marcará profundamente. Esse filme é uma obra visualmente impressionante, com paisagens deslumbrantes do sertão nordestino e uma trilha sonora envolvente que combina música regional com elementos de vanguarda. O filme recebeu o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes em 1969, consagrando Glauber Rocha como um dos grandes cineastas do seu tempo e elevando o Cinema Novo brasileiro ao cenário internacional.

O diretor de cinema Glauber Rocha. Fonte: https://hojebahia.com.br/noticia
/2145/glauber-rocha-a-arte-nao-e-so-talento-e-sobretudo-coragem.html

Além de sua contribuição para o cinema, Glauber Rocha também foi um importante pensador e ativista político. Ele defendia uma visão de cinema como uma ferramenta de conscientização e transformação social, e suas obras frequentemente abordam questões de desigualdade, colonialismo e resistência, estando em total sintonia com o debate público sobre as efervescentes mudanças do país. Ele também acreditava no poder do cinema como uma forma de conscientização e transformação social, e sua militância política era evidente em seus filmes e em sua vida pessoal.

Apesar de sua vida ter sido interrompida precocemente com sua morte aos 42 anos em 1981, Glauber Rocha deixou um legado duradouro no cinema brasileiro e continua sendo uma figura inspiradora para cineastas e artistas em todo o mundo. Sua coragem em desafiar convenções, sua paixão pela arte e seu compromisso com a justiça social garantem que seu trabalho permaneça relevante e impactante até os dias de hoje. Seu nome permanece vivo como uma das figuras mais importantes e influentes da história do cinema brasileiro.


terça-feira, 7 de maio de 2024

Cinema: A vida e a carreira de Alfonso Cuarón

Alfonso Cuarón e seu cinema sem fronteiras
Por Anthony M. D. Muniz

"A única razão pela qual você faz um filme não é para fazer ou se preparar para fazer um filme bom ou ruim, é apenas para ver o que você aprende para o próximo". Alfonso Cuarón

Poucos diretores ainda em atividade tiveram uma filmografia de tanto sucesso quanto a de Alfonso Cuarón. Narrando histórias que vão desde experiências mundanas (como uma viagem de carro pelo México) até jornadas de tirar o fôlego ambientadas no espaço, o diretor desenvolveu uma coletânea de filmes que marcam a experiência de quem assiste, tornando-o uma das mais importantes vozes de sua geração. Com uma trajetória marcada por inovação e excelência cinematográfica, Alfonso Cuarón se destaca como um dos diretores e roteiristas mais talentosos e aclamados do cinema contemporâneo. De sua infância no México à consagração internacional, sua jornada é um testemunho do poder da visão criativa e da paixão pelo cinema.

Nascido em 28 de novembro de 1961, na cidade do México, Alfonso Cuarón Orozco demonstrou desde cedo um interesse apaixonado pelo cinema. Ainda jovem, aos 12 anos de idade, já brincava com sua câmara e, mais tarde, iniciou sua jornada de estudos no Centro Universitário de Estudos Cinematográficos, onde conheceu Emmanuel Lubezki - com quem compartilharia, nos anos seguintes, uma colaboração extensa e muito prodigiosa. Foi nesse centro de estudos que desenvolveu um curta-metragem (seu terceiro até aquele momento) junto com Lubezki e Carlos Marcovich, chamado de "Vengeance is mine" que causaria seu banimento desse grupo de estudos por ter gerado discórdia ao produzir o curta-metragem totalmente em língua inglesa.

Sua formação incluiu, também, estudos de cinema e filosofia na prestigiada Universidade do México, onde aprimorou ainda mais suas habilidades técnicas e desenvolveu sua sensibilidade artística. 

Após ser expulso, Cuarón trabalhou como assistente e diretor de projetos para a televisão. Além disso, os primeiros passos do diretor na indústria cinematográfica foram marcados por uma série de curtas-metragens e projetos independentes que chamaram a atenção por sua originalidade e estilo visual distintivo. Seu talento logo o levou a dirigir seu primeiro longa-metragem (que coescreveu com seu irmão Carlos Cuarón) "Sólo con tu pareja" (1991), uma comédia ousada que lhe rendeu reconhecimento nacional e internacional. O filme aborda temas como as inconsistências na construção dos conceitos de masculinidade, tema que ele abordaria novamente no futuro, me outro longa-metragem.

Esse sucesso, logo em sua estreia, chamou a atenção de produtores em Hollywood, o que levou com que Cuarón iniciasse uma carreira nos EUA trabalhando como diretor em alguns programas de televisão americanos; e continuou nesses passos até conseguir sua primeira oportunidade para dirigir um longa-metragem em língua estrangeira.

Sua estreia na língua inglesa aconteceu com "A princesinha" (1995) que, apesar de não ter sido um grande sucesso de bilheteria, conquistou a crítica e acabou ganhando duas indicações ao Oscar (uma delas sendo de Melhor Cenografia e Fotografia para seu amigo Emmanuel Lubezki, a primeira de muitas). A qualidade da produção agradou os produtores, o que ajudou na realização de seu filme seguinte, lançado em 1998, "Grandes esperanças" (baseado no clássico escrito por Charles Dickens). Este filme foi mais uma tentativa de Cuarón de conseguir sucesso nos cinemas americanos, mas as constantes tentativas dos produtores de impedir o diretor de trazer um tom mais sensual à narrativa aliadas ao pouco sucesso do filme nos cinemas fizeram com que esta experiência fosse frustrante. Com isso, ele percebeu que, talvez, devesse retornar às suas origens para se entregar a uma nova empreitada.

Foi então que ele produziu seu primeiro grande sucesso ao contar a história que se baseava em sua juventude e nas personalidades que marcaram esse período de sua vida. Além disso, desenvolveu uma narrativa em que o sexo (e o desejo) eram elementos essenciais para a narrativa. Foi com o lançamento de "E sua mãe também" (2001) que Alfonso Cuarón conquistou reconhecimento global. O filme, que retrata uma jornada emocional e sensorial pelas paisagens do México, recebeu aclamação da crítica e conquistou grande público ao redor do mundo. Sua habilidade em combinar uma narrativa poderosa com uma estética visual arrebatadora estabeleceu Cuarón como um diretor de destaque no cenário cinematográfico internacional, além de lhe garantir sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Original.

Este merecido sucesso fez com que seu trabalho fosse considerado para novas propostas (dentro e fora do México) de grandes estúdios. Uma dessas propostas, que acabou se concretizando, foi a de ser o diretor de uma das sequências de Harry Potter. Em 2004, Cuarón surpreendeu o mundo com "Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban", o terceiro filme da série baseado nos livros de J. K. Rowlling. Sua abordagem inventiva e atmosférica trouxe uma nova profundidade à franquia, sendo amplamente elogiada pelos fãs e pela crítica. O filme solidificou sua reputação como cineasta capaz de combinar sucesso comercial com integridade artística, elevando ainda mais a qualidade de produção dos filmes da famosa série Harry Potter.

Sua produção seguinte também foi baseada em um livro. "Filhos da esperança" (2007) foi baseado no romance de P. D. James do mesmo nome e acompanha a história de Theo Faron que vive em 2007 numa realidade em que não nascem mais crianças no mundo há muitos anos, pois todas as mulheres se tornaram inférteis. Um milagre acontece ao mesmo tempo que uma grande tragédia, fazendo com que o protagonista se envolva numa jornada perigosa. Em uma produção grande e com uma narrativa surpreendente, o diretor conduz o público em uma história profunda por meio de diversos temas como imigração, guerra e caos social. Apesar da aclamação por parte da crítica, o filme não conseguiu uma bilheteria capaz de recuperar o alto orçamento da produção. Ainda assim, recebeu três indicações aos Oscares de Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Cinematografia).

Apesar de ter alcançado o sucesso desejado nesta produção, foi somente sete anos depois que Cuarón conseguiu alcançar um dos pontos mais altos de sua carreira, com o excelente filme "Gravidade" (2013). Este épico espacial, estrelado por Sandra Bullock e Geroge Clooney, não apenas arrebatou o público com sua intensidade e imersão, como também recebeu uma aclamação da crítica nunca antes vista na carreira do diretor. Cuarón foi agraciado com o Oscar de Melhor Diretor, tornando-se o primeiro diretor latino-americano a receber este prêmio. O filme conquistou mais outros seis prêmios técnicos na premiação americana e uma indicação a Melhor Filme.

Alfonso Cuarón dirigindo Sandra Bullock e George Clooney durante as gravações de "Gravidade" (2013). Fonte: site vulture.com.

Desde então, Cuarón continua a desafiar as convenções do cinema, explorando novas formas de contar histórias e expandindo os limites da linguagem cinematográfica. Seu trabalho mais recente, "Roma" (2018), uma homenagem íntima à sua infância no México, recebeu inúmeros prêmios e consagrações, solidificando seu lugar como um dos diretores mais influentes da atualidade. Com essa produção, ganhou o Leão de Ouro (prêmio máximo no Festival de Veneza, o mais antigo grande festival de cinema do mundo) e seu segundo Oscar de Melhor Direção, além de ter levado os prêmios de Melhor Fotografia e Melhor Filme Internacional.

Alfonso Cuarón dirigindo Yalitza Aparicio durante as gravações de "Roma" (2018).
Fonte: Site hollywoodreporter.com.

Alfonso Cuarón é mais do que um diretor de cinema: ele é um visionário, cuja paixão pela arte e compromisso com a excelência continuam a inspirar gerações de cineastas ao redor do mundo. Sua jornada desde as ruas da Cidade do México até o palco do Oscar é um testemunho de sua visão única e inabalável determinação em transformar sonhos em realidade na tela grande. Por isso, é importante manter a atenção em seus projetos futuros.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Cinema: A vida e a carreira de Agnès Varda

Agnès Varda e as paisagens da vida
Por Anthony M. D. Muniz

"Não estou interessada em ver um filme perfeito apenas por uma mulher - a menos que ela esteja procurando novas imagens (Agnés Varda).

Agnès Varda, uma das figuras mais proeminentes do cinema francês, deixou uma marca única na história do cinema como diretora, roteirista e documentarista. Ela é reconhecida por sua abordagem única, inovação estilística e paixão por contar histórias de uma forma autêntica e provocativa.

Nascida em 30 de maio de 1928, em Bruxelas, Bélgica, Varda era filha de uma francesa chamada Christiane e de um grego de nome Eugène. Apesar de ter se tornado mundialmente famosa pelo seu nome artístico, chamava-se Arlette Varda por batismo - isso pois, segundo ela mesma, foi concebida na cidade de Arles. Abandonou esse nome ainda jovem e, aos 18 anos já era Agnès.

Agnès Varda dirigindo seu primeiro filme em 1955 (La Point Courte). 

Seu primeiro longa de ficção, "La Pointe Courte", foi lançado em 1955. Em seu trabalho de estreia ela narra a história de um casal que visitava a terra natal do marido enquanto passam por uma crise no relacionamento. Por meio do uso de uma fotografia envolvente e quase onírica, somos conduzidos pelas reflexões internas dos personagens. Já em seu primeiro projeto ficcional, ela mostrava muita habilidade, criatividade e profundidade como diretora e roteirista. O filme apresentou uma narrativa não linear e uma abordagem estilística ousada, tornando-se um marco em sua carreira e no cinema francês.

"La Pointe Courte" é frequentemente considerado um precursor da Nouvelle Vague, o movimento cinematográfico francês que se iniciou no fim da década de 1950 que buscava uma renovação do cinema francês (considerado pelos críticos da época, distante da realidade francesa do pós-guerra), apesar de tal posto ser comumente considerado de Jean-Luc Goddard e François Truffaut, que dirigiram "Acossado" (1960) e "Os incompreendidos" (1959), respectivamente. Ainda assim, ela foi um dos nomes mais importantes do movimento, destacando-se por não ter sido crítica de filmes antes de se tornar diretora, diferente da maioria dos outros diretores integrantes da Nouvelle Vague.

Outro filme importantíssimo de sua filmografia e que integrou esse movimento cinematográfico foi "Cleo das 5 às 7" (1962), considerada por muitos como sua obra-prima, que ainda é um dos filmes mais conhecidos de Varda e destaca sua sensibilidade para questões femininas. Nesse filme acompanhamos duas angustiantes horas vividas por uma cantora pop que aguarda o resultado de uma biópsia. Sabendo que o resultado do exame pode mudar totalmente a trajetória de sua vida, a protagonista passa por extensos e profundos momentos de reflexão sobre sua vida e sua imagem (que é constantemente objetificada), além de que tem de encarar seu medo (assim como também do espectador) da morte. As qualidades do filme e a diversidade de temas abordados durante sua projeção tornaram-no uma das obras mais importantes e celebradas do cinema.

Para além de sua reconhecida obra ficcional, em sua filmografia destaca-se seu extenso trabalho como documentarista. A obra de Varda frequentemente explorou a vida cotidiana e as experiências de pessoas comuns. Seu documentário "Du côte de la côte" (1958) examinou as atividades de veraneio na costa francesa, estabelecendo sua reputação como uma observadora aguçada da sociedade. Ao longo de sua carreira, Agnès Varda não apenas explorou temas pessoais, mas também abraçou questões sociais e políticas em seus documentários. Ela abordou diversas temáticas, ambientes e momentos histórico-sociais. Desde o movimento dos "panteras negras", na década de 1960 nos EUA, ao movimento feminista francês no decorrer do século XX. Passou pelos bailes de Cuba e pelas ruas francesas abordando pessoas comuns.

Em "Les Glaneurs et la glaneuse" (2000), por exemplo, ela examina a sociedade de consumo e a vida de pessoas marginalizadas que buscam sobreviver através da recuperação de alimentos e objetos descartados. E foi assim, a partir de seu olhar gentil e atento, que ela retratou o mundo com tantos detalhes e com tanta vivacidade. Ela encontrava no ordinário tudo que havia de mais extraordinário. Com suas próprias palavras, em seu documentário "As praias de Agnès" (2009), ela diz que "se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens".

O cinema representou outro importante detalhe de sua vida. Foi por meio dele que conheceu, em 1958, outro notório diretor francês que era apaixonado por musicais, o diretor Jacques Demy. Ele foi responsável por obras como "Os guarda-chuvas do amor" (196) e "Duas garotas românticas" (1967). Três anos após se conhecerem, casaram-se e viveram juntos até a morte do diretor em 1990. A paixão e admiração de Varda por Demy fez com que ela fizesse dois filmes dedicados à sua memória: o longa de ficção "Jacques de Nantes" (1991) e o documentário "O Universo de Jacques Demy" (1955).

Agnès Varda durante a filmagem de "Varda por Agnès" (2019).

Nos últimos anos de sua carreira, Varda dedicou-se especialmente a seu trabalho como documentarista e passou a rememorar sua própria trajetória e memória. Mas, ao invés de se auto-reverenciar, a diretora buscou trazer novos olhares pelos lugares e pelas pessoas que conheceu. Dessa maneira, continuou a criar obras notáveis como "Visages, Villages" (2017), codirigido com o fotógrafo JR, em que os dois artistas se empenharam em recriar fotografias tiradas no decorrer dos anos pela diretora e em recuperar a história do momento em que elas foram fotografadas. O documentário foi indicado ao Oscar e ganhou o prêmio Olho de Ouro no Festival de Cannes. Entre outros documentários, ela dirigiu também "Varda por Agnès" (2019), uma autobiografia codirigida por Didier Rouget, em que ela narra a sua vida e carreira para uma plateia num teatro, criando uma inspirada e comovente viagem metalinguística. Essa produção foi lançada, coincidentemente, no ano de sua morte.

Agnès Varda recebeu inúmeros prêmios ao longo de sua carreira, incluindo a Palma de Ouro honorária no Festival de Cannes, em 2015, e um Oscar honorário, em 2018. Ela faleceu em 29 de março de 2019, aos 90 anos.

Agnès Varda deixou um legado duradouro como uma das cineastas mais inovadoras e visionárias do cinema francês. Sua abordagem única, bem como seu compromisso com a autenticidade e exploração de uma variedade de temas (desde a feminilidade e questões sociais até o rotineiro e mundano da vida) continuam a inspirar cineastas e espectadores em todo o mundo. Sua contribuição foi extremamente significativa para a sétima arte e estabeleceu-a como uma verdadeira pioneira, além de uma voz única na história do cinema.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Cinema: A vida e a carreira de Federico Fellini

Federico Fellini: o espetáculo da vida e da memória
Por Anthony M. D. Muniz

"O que é um artista? Um provinciano que se encontra em algum lugar entre uma realidade física e uma realidade..." - Federico Fellini.

É possível traçar semelhanças entre as características da natureza do circo e do cinema. Ambos são expressões (ou representações) artísticas da realidade; recriações fictícias da vida. A linha que os separa talvez seja a eterna aspiração do cinema em estar (quase sempre) mais próximo da realidade, enquanto o circo se concentra mais em existir em uma "realidade própria".

Imagem: Federico Fellini dirigindo um filme na Itália.

Essas duas perspectivas da realidade são as bases do cinema de Federico Fellini. Mas, indo contra essa ideia de separação, seu cinema na verdade constrói uma realidade única, que é tão circense quanto cinematográfica. O tamanho de seu nome é incomparável no mundo do cinema. Ele é amplamente reconhecido como um dos diretores mais influentes da história do cinema italiano e mundial. A sua brilhante carreira, que abrangeu várias décadas do século XX, foi caracterizada por uma imaginação extravagante, narrativas únicas e uma explosão profunda da condição humana.

Federico Fellini nasceu em uma família de classe média em Rimini, uma comuna italiana localizada no nordeste da Itália. Seus pais eram Urbano Fellini, um marinheiro viajante, e Ida Barbiani Fellini. Desde cedo, Fellini demonstrou uma imaginação vívida e uma inclinação para a arte. Ele foi profundamente influenciado pelo circo e pelo teatro, inspirações que se tornariam evidentes em suas obras cinematográficas posteriores. Sua infância e juventude provinciana serviria de inspiração para vários de seus futuros filmes, como "Os boas vidas" (1953) e "Amarcord" (1973).

Depois de concluir o Ensino Médio, Fellini, aos seus 19 anos, se matriculou na Universidade de Roma em 1939, onde estudou Direito, mas não chegou a concluir o curso. Foi durante esse período que ele começou a trabalhar como caricaturista e escritor de humor para várias publicações. Seu talento para a sátira visual e sua habilidade em observar e representar o comportamento humano seriam características que ele, mais tarde, incorporaria em suas obras cinematográficas. Não demorou muito para o cineasta começar a escrever roteiros de comédia, e logo entrou para o cinema como assistente de diversos diretores, entre eles Roberto Rossellini, adquirindo um profundo conhecimento acerca da produção audiovisual. Ele evoluiu seus conhecimentos e habilidades até que, em 1945, colaborou para a criação do roteiro do filme "Roma, cidade aberta", de Roberto Rossellini, filme clássico do movimento neorrealista do cinema italiano.

Os primeiros passos de Fellini no mundo do cinema foram como roteirista, quando encontrou seu mentor, Roberto Rossellini, um dos pioneiros do movimento neorrealista italiano. Fellini colaborou com Rossellini em várias produções notáveis, incluindo "Paisà" (1946). Esses filmes foram fundamentais para a formação de Fellini como cineasta, introduzindo-o ao realismo cru que caracterizou muitas produções neorrealistas da época.

A influência de Rossellini foi profunda, mas Fellini começou a trilhar seu próprio caminho no cinema, afastando-se gradualmente do neorrealismo tradicional para explorar um estilo mais pessoal e surrealista. No cinema se tornaria cada vez mais "circense".

Fellini fez sua estreia como diretor no filme "Luzes da Ribalta" (em colaboração com Alberto Lattuada). Este filme explorava o mundo do teatro de variedades e do circo. Embora o filme tenha recebido críticas mistas, ele marcou o início da jornada de Fellini como diretor e salientou seu interesse crescente em personagens marginais e suas histórias. Em 1954, Fellini dirigiu seu primeiro longa-metragem solo, o "O Sheik Branco", cujo roteiro foi uma colaboração com Tullio Pinelli e com o notório diretor Michelangelo Antonioni. Estas duas produções marcariam a virada na carreira de Fellini.

Em 1953 ele lançou "Os boas vidas" (que se tornaria um dos filmes favoritos de diversos grandes diretores, como Stanley Kubrick). Este filme retrata a vida de um grupo de rapazes em um vilarejo e apresenta os acontecimentos mundanos que os cercam. No ano seguinte, lançou "A estrada", um filme que seria fundamental para sua evolução como diretor. Este filme conta a história de Gelsomina (interpretada por sua esposa, Giulietta Masina), uma jovem ingênua que é vendida pelo próprio pai para acompanhar Zampanò (interpretado por Anthony Quinn), um artista de rua bruto e sem escrúpulos. O filme captura a jornada espiritual de Gelsomina e a complexa dinâmica entre os dois personagens principais. "A estrada" foi um sucesso internacional e marcou o início do reconhecimento de Fellini, lhe garantiu duas indicações ao Oscar de Melhor Roteiro Original, além da vitória pela categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Ao longo das décadas de 1950 e 1960, Fellini passou de um estilo mais realista para uma abordagem mais imaginativa e simbólica do cinema. Sua evolução artística foi evidenciada por filmes que são, hoje, considerados clássicos do cinema mundial.

O filme "As noites de Cabíria" (1957) foi o filme que trouxe uma das mais notáveis colaborações de Fellini com sua esposa, a atriz Giulietta Masina. O longa acompanha a história de Cabíria, uma prostituta que enfrenta desilusões e desafios, é comovente e profundamente humana. Este filme recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e estabeleceu a relação duradoura entre Fellini e Masina no cinema. Ao lado de "Julieta dos espíritos" (1965), "As noites de Cabíria" retrata com destaque a devoção de Fellini pelo talento da esposa, uma das mais celebradas atrizes da história do cinema italiano.

Em seguida, ele lançou "A doce vida" que é frequentemente considerado um dos pontos altos de sua carreira. Este filme é uma exploração afiada da decadência da sociedade moderna e da busca incessante por prazeres vazios. "La dolce vita" (título original) introduziu o termo "paparazzi" na cultura popular e solidificou a posição de Fellini como um diretor de renome internacional ao vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o prêmio máximo de um dos maiores festivais de cinema do mundo. Em seguida, ele produziu "8 ½", talvez sua obra definitiva e uma exploração profunda da crise criativa de um diretor de cinema, Guido Anselmi (interpretado por Marcello Mastroianni). O filme, lançado em 1963, é uma mescal de sonho e realidade, com sequências surreais que desafiam as convenções cinematográficas. Este filme ganhou dois Oscars, incluindo de Melhor Filme Estrangeiro e, novamente, consolidou Fellini como um diretor de visão singular.

Imagem: Cena do filme "A doce vida" (1963).

Outro filme notável de sua carreira (já numa fase de maior maturidade em seu trabalho) foi o nostálgico "Amacord" (1973). Esta obra semiautobiográfica é uma celebração nostálgica da infância e adolescência de Fellini na Itália Fascista. O filme é repleto de personagens peculiares e situações cômicas, capturando a complexidade da experiência humana de maneira comovente. O filme marca, também, sua admiração pelo aspecto "circense" e exagerado das cenas, sempre representando o mundo do filme com ares mais "cartunescos" e caricaturais.

Federico Fellini não apenas conquistou prêmios e a admiração de críticos, como também deixou um legado cinematográfico inegável que continua a influenciar cineastas de todo o mundo. Seu estilo visual e narrativo distintivo, que combinava realismo e fantasia, é uma fonte de inspiração para diretores contemporâneos como Terry Gilliam, David Lynch, Pedro Almodóvar e Martin Scorcese.

Fellini também desempenhou um papel importante na divulgação do cinema italiano ao redor do mundo. Ao lado de outras produções notáveis do cinema italiano no século XX, suas obras foram amplamente distribuídas internacionalmente e ajudaram a consolidar a reputação da Itália como um centro de excelência cinematográfica. Seu cinema foi carregado de memória e é uma celebração do tempo, das pessoas e dos momentos que tornaram o Fellini o cineasta e ser humano que seria tão fortemente lembrado e admirado.

Ao longo de sua carreira, Fellini deixou um impacto indelével na indústria cinematográfica. Sua habilidade de combinar a observação da vida cotidiana com elementos surrealistas e a exploração das complexidades humanas resultou em filmes que transcenderam o tempo e a cultura. Fellini permanece uma figura lendária do cinema, uma inspiração para cineastas emergentes e um ícone que continuará a fascinar as audiências por muitas gerações vindouras. Sua jornada artística é uma lição de criatividade, imaginação e a eterna busca por compreender a condição humana através da magia do cinema. Federico Fellini não é apenas um diretor, mas um artista visionário cujo trabalho permanecerá gravado no coração do cinema para sempre.