segunda-feira, 13 de maio de 2024

Cinema: a vida e a carreira de Ingmar Bergman

Ingmar Bergman: entre a memória e a arte
Por Anthony M. D. Muniz

"Filme como sonho, filme como música. Nenhuma arte passa pela nossa consciência como o filme, e vai diretamente aos nossos sentimentos, às profundezas das salas escuras de nossas almas". Ingmar Bergman

O que faz um diretor de cinema ser considerado um gênio e mestre de sua arte? Bom, Ingmar Bergman pode ser um dos melhores exemplos para se encontrar uma resposta a essa pergunta.

Ingmar Bergman é uma figura icônica no mundo do cinema, reconhecido por suas contribuições significativas para a arte cinematográfica. Em 1918, ao norte de Estocolmo, na cidade de Uppsala, na Suécia, nasceu e cresceu um ainda jovem Ernst Ingmar Bergman, o segundo de três filhos que integravam uma família abastada.

Filho de Erik Bergman, um pastor luterano, e de Karin Åkerblom, uma burguesa, ele viveu seus primeiros anos de vida rodeado de muito conforto financeiro, conforto esse que não correspondia com outros aspectos de sua vida como, por exemplo, os longos períodos de enfermidade que ficaram marcados em sua infância. Outro aspecto importante também foi o fato de que sua infância foi marcada por momentos de severidade religiosa, em que episódios de castigo, que iam desde bofetadas e chicotadas à maus-tratos de natureza mais psicológica. Esses momentos de repressão marcaram profundamente a personalidade de Bergman e fizeram-se muito presentes em toda a obra do artista. Ainda criança, criou um pequeno teatro de fantoches, confeccionados por ele mesmo, onde iniciou seus primeiros passos de criatividade artística.

Ingmar Bergman num set de gravação nos anos 1960. Fonte: https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/films/features/ingmar-bergman-documentary-films-a-year-in-the-life-seventh-seal-wild-strawberries-sweden-a8746426.html

Esse interesse constante pela arte fez com que escolhesse estudar Letras e História da Arte na Universidade de Estocolmo e, assim, iniciou sua produção como diretor de teatro universitário, função que desempenhou até 1942. Após essa breve experiência, começou a trabalhar como auxiliar na produção de peças teatrais no Grande Teatro Dramático de Estocolmo. Mas foi uma montagem sua, ainda nos seus anos no teatro universitário, que ajudou a colocar seu nome em destaque. Ainda em 1942, a sua montagem de "A morte de Gaspar" foi assistida pela produtora Svensk Filmindustri, que acabou contratando-o no ano seguinte para trabalhar em seu departamento de roteiros. 

No mesmo ano em que iniciou sua carreira como diretor de cinema, Bergman já havia iniciado seus trabalhos como diretor artístico no Teatro Municipal de Helsingborg, onde trabalhou de 1944 a 1952. Em 1944, enquanto trabalhava nesse teatro, lançou seu primeiro longa-metragem chamado "Tortura". Apesar de se seguir uma filmografia muito prolífica, chegando a lançar em alguns anos mais de um filme por ano, foi somente em seu lançamento de 1955, intitulado "Sorrisos duma noite de verão" que ele começou a vislumbrar o sucesso e o reconhecimento em nível internacional, sendo muito bem recebido pelo público e pela crítica em sua exibição no Festival de Cannes daquele ano. Ainda assim, tendo recebido muitos louros pela produção deste filme, foi somente no trabalho seguinte que seu nome se elevou ao dos grandes artistas da sétima arte.

Em 1957, Bergman apresentou uma de suas produções mais conhecidas e aclamadas: "O sétimo selo". O filme conta a história de um cavaleiro que retorna das Cruzadas após dez anos e se depara com uma Europa devastada pela peste negra. Em meio a uma série de acontecimentos, ele é confrontado pela figura da morte e, em uma tentativa de escapar do destino final, a desafia para uma partida de xadrez com sua vida (ou morte) como recompensa pela vitória. As reflexões trazidas ao público fizeram desse filme um marco na história do cinema, pavimentando a percepção de que o cinema não só poderia abordar profundamente temas existenciais e filosóficos, como também deveria ser considerado uma forma de arte tão complexa quanto as outras.

Cena do filme “O Sétimo Selo” (1960). Fonte: https://diariodorio.com/mostra-centenario-ingmar-bergman-chega-ao-rio-de-janeiro-com-filmes-ineditos/

Esse sucesso sacralizou seu nome entre os grandes diretores de cinema de todos os tempos e marcou uma série de produções magistrais que solidificaram ainda mais sua filmografia. Em seu filme seguinte, "Morangos silvestres" (1957), ele apresentou uma reflexão nostálgica sobre a vida e como o peso que as escolhas feitas podem marcar, ou mesmo condenar, os anos derradeiros de uma pessoa.

Já em "Persona" (1966), o diretor mergulhou em uma experiência surrealista e psicológica no mundo da identidade e da dualidade. Nesse filme ele aborda como duas personagens, uma atriz renomada em crise de personalidade e sua enfermeira, se veem encurraladas ao perceberem que estão se tornando uma única persona. Um fato interessante sobre essa produção é que a inspiração para o diretor veio ao perceber que as atrizes Bibi Andersson e Liv Ullmann (ambas protagonistas desse filme e que já haviam trabalhado com ele) eram estranhamente parecidas e que isso poderia render uma história.

Além de seu trabalho como diretor, Bergman também foi um prolífico escritor e produtor, colaborando com alguns dos maiores talentos do cinema sueco e internacional. Sua influência se estendeu muito além das fronteiras da Suécia, inspirando cineastas em todo o mundo e deixando um legado duradouro na indústria cinematográfica.

Outra produção marcante de sua filmografia foi sua obra com maiores elementos autobiográficos: "Fanny e Alexander". Lançado inicialmente como filme em 1982 e, posteriormente, como minissérie para televisão em 1983, o longa-metragem conta a história de uma família que precisa lidar com a perda de um membro importante, o pai, e o turbilhão de emoções que se seguem a partir disso, especialmente para Alexander ("representação" fictícia de Bergman na infância) que, após a morte do pai, passa a ver fantasmas e precisa lidar com a real (e terrível) figura de seu novo padrasto. Baseado em fragmentos de sua vida, Bergman trouxe aqui uma das mais marcantes obras sobre infância, fantasia e memória da história do cinema. O filme marcou a crítica e o público ao apresentar uma história envolvente e ornamentada de uma qualidade de produção exuberante, chegando a vencer 4 Oscars, incluindo de Melhor Filme Estrangeiro.

Ingmar Bergman se tornou uma das maiores referências para a arte cinematográfica e, apesar de ter deixado um grande legado como escritor e dramaturgo, ele mesmo reconheceu a força extraordinária e singular que apenas o cinema é capaz de alcançar.

Apesar de sua morte em 2007, o impacto de Ingmar Bergman no cinema continua a ser sentido até os dias de hoje. Sua habilidade em capturar a essência da condição humana, aliada à sua maestria técnica, garantiu-lhe um lugar eterno entre os grandes mestres do cinema. Ele foi uma daquelas figuras capazes de inspirar outros gênios de sua arte, e continua inspirando

Cinema: a vida e a carreira de Glauber Rocha

Glauber Rocha, o cineasta brasileiro
Por Anthony M. D. Muniz

"O Cinema Novo esteve ao lado da utopia brasileira. Se é feio, irregular, sujo, confuso e caótico, é também belo, desarmônico, luminoso e revolucionário". Glauber Rocha

Glauber Rocha, um dos mais renomados diretores de cinema do Brasil é um dos principais representantes do movimento do Cinema Novo, deixou uma marca permanente na história da cinematografia brasileira. Sua vida e carreira são um testemunho de criatividade, engajamento político e uma busca incansável por uma identidade cinematográfica autenticamente brasileira.

Nascido em Vitória da Conquista, Bahia, em 14 de março de 1939, Glauber cresceu em um ambiente culturalmente rico e politicamente agitado. Mudou-se para Salvador com sua família em 1947 e, desde cedo, demonstrou interesse pelas artes e pelo cinema. Ainda em sua juventude conheceu o cineasta Luiz Paulino dos Santos e, assim, pode se envolver pela primeira vez na produção de um curta-metragem em "Um dia na rampa" (1955). Em 1959 iniciou seus estudos na Faculdade de Direito na hoje conhecida como Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Glauber estreou como diretor em 1959, com os curtas-metragens "Pátio" e "Cruz no pátio" e essa experiência foi crucial para os rumos que sua vida tomaria desde então. Logo após, em 1961, ele abandonou o curso de Direito para trabalhar como crítico de cinema. Foi nesse momento que, se casou com a atriz Helena Ignez.

Seu primeiro longa-metragem, "Barravento" (1962) já demonstrava sua abordagem única e provocativa. Em seus filmes, Glauber buscava retratar a realidade brasileira de uma maneira não convencional, utilizando técnicas inovadoras e estilísticas que desafiavam as convenções cinematográficas da época.

Um dos filmes mais emblemáticos de Glauber é "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (964), uma obra-prima do Cinema Novo que explora temas como religião, violência e opressão social no nordeste brasileiro. O filme foi lançado no Festival de Cannes (concorrendo à Palma de Ouro) e recebeu aclamação internacional, solidificando a posição de Glauber como um dos diretores mais importantes do Brasil. Sua linguagem visual inovadora e seu estilo narrativo ousado influenciaram gerações de cineastas em todo o mundo.

Cena com o protagonista do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964). Fonte: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2022/05/03/interna_cultura,1363772/deus-e-o-diabo-na-terra-do-sol-sera-lancado-pela-segunda-vez-em-cannes.shtml

No entanto, apesar de seu talento e reconhecimento internacional, Glauber enfrentou desafios em sua carreira, incluindo a censura do regime militar brasileiro, que via suas obras como subversivas. Ele passou períodos no exílio, mas continuou a produzir filmes provocativos e visionários como "Terra em transe" (1967) entre outros. Este filme se passa em Eldorado, um país fictício da América Latina, e segue as vicissitudes de um intelectual idealista, Paulo Martins, que se envolve nas intrigas políticas e nas lutas de poder de sua nação. Glauber utiliza uma narrativa não linear e uma linguagem visual arrojada para retratar as complexidades políticas e sociais do contexto latino-americano. O filme é uma crítica contundente às elites corruptas, ao imperialismo estrangeiro e à manipulação da mídia, enquanto examina as contradições e compromissos morais enfrentados por aqueles que buscam mudança.

A cinematografia de "Terra em transe" é marcada por imagens icônicas e simbolismo poderoso, com destaque para os contrastes entre luz e sombra, os enquadramentos intrincados e a edição dinâmica. A trilha sonora, composta por Sérgio Ricardo, contribui para a atmosfera intensa e dramática do filme.

O título "Terra em transe" evoca um sentido de tumulto e instabilidade, refletindo não apenas as convulsões políticas do enredo, como também a condição turbulenta de toda uma região. O filme é uma reflexão profunda sobre os dilemas enfrentados por países em desenvolvimento, presos entre tradição e modernidade, nacionalismo e globalização, idealismo e pragmatismo.

Em "O dragão da maldade conta o santo guerreiro" (1969) ele apresenta uma sequência para os eventos de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), em que Antônio das Mortes deve voltar à ação após matar o último dos cangaceiros há 29 anos, quando surge um novo bandido, que acabará por se revelar um idealista e o marcará profundamente. Esse filme é uma obra visualmente impressionante, com paisagens deslumbrantes do sertão nordestino e uma trilha sonora envolvente que combina música regional com elementos de vanguarda. O filme recebeu o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes em 1969, consagrando Glauber Rocha como um dos grandes cineastas do seu tempo e elevando o Cinema Novo brasileiro ao cenário internacional.

O diretor de cinema Glauber Rocha. Fonte: https://hojebahia.com.br/noticia
/2145/glauber-rocha-a-arte-nao-e-so-talento-e-sobretudo-coragem.html

Além de sua contribuição para o cinema, Glauber Rocha também foi um importante pensador e ativista político. Ele defendia uma visão de cinema como uma ferramenta de conscientização e transformação social, e suas obras frequentemente abordam questões de desigualdade, colonialismo e resistência, estando em total sintonia com o debate público sobre as efervescentes mudanças do país. Ele também acreditava no poder do cinema como uma forma de conscientização e transformação social, e sua militância política era evidente em seus filmes e em sua vida pessoal.

Apesar de sua vida ter sido interrompida precocemente com sua morte aos 42 anos em 1981, Glauber Rocha deixou um legado duradouro no cinema brasileiro e continua sendo uma figura inspiradora para cineastas e artistas em todo o mundo. Sua coragem em desafiar convenções, sua paixão pela arte e seu compromisso com a justiça social garantem que seu trabalho permaneça relevante e impactante até os dias de hoje. Seu nome permanece vivo como uma das figuras mais importantes e influentes da história do cinema brasileiro.