Stanley Kubrick - Um gênio um tanto fantástico
Por Anthony M. D. Muniz
"Se pode ser escrito, ou pensado, pode ser filmado." - Stanley Kubrick.
Há poucas figuras na história do cinema que tiveram uma filmografia tão singular e influente quanto a de Stanley Kubrick. Ele foi um diretor que se aventurou em diferentes décadas, gêneros e maneiras de se fazer cinema.
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Stanley Kubrick durante as gravações de "Barry Lyndon". Fonte: Wikipedia. |
Nesse início da adolescência, além do xadrez, outro interesse se destacou com clareza para ele: o Jazz. Além de um ouvinte assíduo e extremamente interessado nos artistas daquela época, ele tocava bateria e tinha uma profunda vontade de se tornar um baterista de Jazz profissional. Mas, esses interesses junto a sua mediocridade escolar fizeram com que seu pai se preocupasse com o que ele poderia fazer de seu futuro. Com a intensão de desviar essas "obsessões" da mente do filho, seu pai o presenteou com uma câmera fotográfica Graflex. O resultado não poderia ser mais favorável.
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Fonte: ilmondodelleimmagini.altervista.org. |
Durante esses anos de trabalho, Kubrick viveu uma tremenda expansão cultural e pessoal. Ele tornou-se um leitor prolífico e, também, esse trabalho lhe permitiu viajar por muitas partes dos Estados Unidos e por algumas partes do mundo. Esse momento de formação intelectual fez com que ele se inscrevesse como ouvinte na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde assistiu às aulas de Lionel Trilling e Mark Van Doren.
Seu envolvimento com a fotografia fez om que seu interesse pela construção das imagens e, consequentemente, pelo cinema crescesse rapidamente. Foi então que decidiu sair de seu trabalho carregando com ele o desejo de se tornar um cineasta.
O reencontro com um antigo amigo do colégio, Alexander Singer (que futuramente seria diretor também), fez com que surgisse uma oportunidade. Singer trabalhava como assistente na March of Time, na época uma célebre série de atualidades cinematográficas, e soubera que seus patrões gastavam cerca de 40 mil dólares para a feitura de filmes de oito ou nove minutos. Juntos, Kubrick e Singer, decidiram fazer um curta-documentário que custaria dez vezes menos. Sendo assim, a primeira produção de Stanley Kubrick foi "O Dia da Luta" (1951) sobre o boxeador de peso médio Walter Cartier, sobre o qual o diretor já havia feito uma reportagem fotográfica para a Look. Mas o curta, que foi feito em 35 mm, não foi comprado pela March of Time, que ofereceu pelo filme um valor menor que o do orçamento, mas adiantando a ele 1.500 dólares na sua produção seguinte, "Flying Padre" (1951). Esse foi outro curta-documentário sobre um padre que viajava de uma paróquia indígena a outra, no Novo México, em um Piper Cub (um avião monomotor a pistão, fabricado de 1937 a 1947).
Depois desses dois empreendimentos, ele sai definitivamente de seu trabalho como fotógrafo da Look e decide começar a trabalhar em sua primeira ficção em longa-metragem. É então que lança "Medo e Desejo" (1953), uma produção pequena que, mesmo feita com recursos escassos, consegue chamar a atenção da crítica, despertando a vontade de investir em outra produção. Curiosamente, anos depois do lançamento, Kubrick ficaria tão envergonhado com esse primeiro longa que tentou retirá-lo de circulação de todas as maneiras possíveis.
Nos três anos seguintes ele trabalhou em outras três produções: o curta-metragem "The Seaferers" e os longas "A Morte Passou por Perto" e "O Grande Golpe", que o ajudaram a expandir suas habilidades narrativas, especialmente os dois longas-metragens (que foram muito inspirados nos filmes noir produzidos na época). Mas, foi somente seu filme seguinte que teve impacto considerável em sua carreira, "Glória Feita de Sangue".
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Filme: Glória Feita de Sangue. Fonte: Papo de cinema. |
Este filme lançou Kubrick entre os diretores mais promissores da sua época, mas, antes que pudesse trabalhar em uma produção mais autoral, acabou sendo convidado por Kirk Douglas para trabalhar na direção de "Spartacus", um grande épico hollywoodiano. O convite se deu graças a amizade de Kubrick e Douglas depois do último trabalho juntos. Ele acabou aceitando a oferta.
A produção foi cara e caótica, com várias discordâncias criativas e atrasos. Apesar disso, o filme acabou sendo lançado em 1960 e tornou-se um sucesso de público e crítica, ganhando, inclusive, 4 Oscars, o que ajudou a salientar sua posição de bom profissional em Hollywood. Isso por ter conseguido terminar a produção, mesmo com dificuldades, e ter garantido o sucesso.
Todo esse tumulto fez com que ele desejasse não mais trabalhar em Hollywood e, então, mudou para a Inglaterra. Ainda assim, teve de retornar aos EUA para as filmagens de seu filme seguinte: "Lolita" (1962).
Assim como o romance no qual o filme foi baseado, o lançamento foi polêmico por apresentar na história o ponto de vista de Humbert Humbert, personagem que fica interessado em sua enteada de apenas 12 anos de idade (a personagem-título, Lolita). A partir desse filme, o diretor passa a utilizar o humor negro para compor as cenas, trazendo o absurdo e a excelência técnica da produção. O sucesso lhe garantiu uma indicação ao Oscar de Roteiro Adaptado, que foi escrito pelo autor do livro original, Vladimir Nabokiv.
Em 1964 ele lança uma de suas obras mais memoráveis: "Dr. Fantástico". Ambientado em uma versão fictícia da Guerra Fria, o longa acompanha uma série de personagens que precisa lidar com uma inesperada ameaça nuclear de um general americano que autoriza o lançamento de mísseis nucleares dos EUA contra a, então, União Soviética. Numa "sala de guerra" os membros do governo (incluindo o presidente) tentam corrigir a situação, acabando por consultar o Dr. Fantástico, um estranho especialista em poderio nuclear que já foi membro do Partido Nazista durante a Segunda Guerra Mundial (até ser recrutado pelos EUA quando a guerra acabou). Baseado em um romance de thriller político, o filme, em uma pegada satírica e um humor negro muito afiado, marcou a época por trazer representações (algumas bem exageradas) das tensões políticas daquele momento, além de proporcionar, talvez, a melhor performance da carreira de Peter Sellers (que lhe rendeu sua primeira e única indicação ao Oscar de Melhor Ator) que interpreta três personagens diferentes: o Capitão Lionel Mandrake, o Presidente Merlin Muffrey e o Dr. Fantástico (o bizarro personagem-título que, na versão original, garantiu ao diretor suas primeiras indicações ao Oscar de Melhor Direção, Roteiro Adaptado e Filme). Por causa desse filme, seus projetos seguintes tiveram pleno domínio criativo nas suas mãos, marcando um novo momento em sua carreira e, foi sabendo disso, que ele iniciou seu projeto mais ambicioso. Ele passou os 4 anos seguintes trabalhando numa das maiores obras de ficção científica da história: "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968).
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Produção do filme "2001: Uma odisseia no espaço". Fonte: Stanley Kubrick - Ausstellung Exhibition. |
Com o auxílio de Arthur C. Clarke (corroteirista e autor do livro do mesmo nome, que foi escrito concomitantemente ao filme) Kubrick expandiu a concepção do que poderia ser a ficção científica da época ao apresentar um longa-metragem (incutido de 3 histórias) que apresentava questionamentos existenciais sem se restringir totalmente a uma visão antropomórfica do cosmos, aos colocar seres humanos no filme em contato com um objeto que vai além de sua compreensão lógica.
Nessa produção, Kubrick dá vazão a um movimento de enriquecimento da semiótica de seu trabalho. Se em "Dr. Fantástico" já é possível ver um comentário mais claro das relações entre poder e sexo ou o militarismo americano e a construção da masculinidade (elementos inteligentemente explorados pelo senso de humor das situações) na sua construção simbólica, aqui ele inicia um processo de construção que expande as representações de sua mise-em-scène. Desde a música de abertura "Also sprach Zarathustra" de Richard Strauss (em referência à "Assim Falou Zarathustra" de Niietzche) ao famoso cut que marca a transição do osso usado como ferramenta de batalha pelo que seriam os ancestrais do homo sapiens para uma estação espacial, que marca brilhantemente a transição temporal do filme, entre outros mecanismos narrativos cuidadosamente inseridos pelo diretor. Ele passa, a partir desse filme, a abordar as questões e camadas de seus filmes de uma maneira mais complexa (e quase hermética para alguns), que serão responsáveis por elevar as considerações quanto ao seu trabalho, sua intelectualidade e a influência de sua filmografia no cinema e nas maneira de se fazer cinema.
O crítico de cinema Michel Ciment define, em seu livro-coletânea "Kubrick", que "2001: Uma Odisseia no Espaço" marca um momento na filmografia de Kubrick em que ele se dedica a criar suas obras a partir de bases mais fantásticas. Tendo iniciado esse momento durante a feitura de "Dr. Fantástico", ele desenvolveu seus projetos por cerca de 20 anos, construindo-os em torno de universos ficcionais de melhor lógica interna restrita, com exceção apenas de "Barry Lyndon" (1975) que funciona melhor como um retrato pictórico da nobreza inglesa do século XVIII.
Em "Dr. Fantástico" testemunhamos uma realidade que será destruída por um bombardeio nuclear irrefreável, que foi motivado por circunstâncias pessoais e irreais. Em "2001: Uma Odisseia no Espaço" acompanhamos a realidade da humanidade em momentos diferentes de sua história (na maior parte em um futuro mais moderno e distante) interagindo com diferentes formas de tecnologia (conscientes ou não). Em "Laranja Mecânica" (1972), longa-metragem seguinte ao lançamento de "2001", retrata a vida de Alex DeLarge (brilhantemente interpretado por Malcolm McDowell), que é um jovem membro de uma gangue que aderiu a "ultraviolência" em seus ataques randômicos (toda a história é apresentada num futuro distópico, mas não tão distante assim). Por fim, em "O Iluminado", de 1980, (que, na visão de Michel Ciment, encerra esse período de representação fantástica) Kubrick apresenta a história de uma família que, lentamente, é levada à loucura após viver por algumas semanas dentro de um grande (e antigo) hotel durante o extremo inverno - filme que se tornou um dos mais reverenciados (e referenciados) filmes de terror da história do cinema.
Apesar de diferentes em suas representações e gêneros, todos os filmes carregam em comum (como característica principal) um deslocamento da realidade, que só é suscitada por elementos corriqueiros, mas que é marcada por representações distantes do real; desde, por exemplo, da realidade política, que é fragilmente abalada de maneira cômica e exagerada (em "Dr. Fantástico"), à percepção psíquica do real pelos personagem em cena (em "O Iluminado"). Essa distância do real é um dos fatores que permitem a amplitude das interpretações que o trabalho de Kubrick possibilita.
Durante os anos seguintes ao lançamento de "O Iluminado", Kubrick se dedicou a uma séria de projetos que não seguiram em frente. Seu maior projeto - que nunca foi lançado - foi uma biografia de Napoleão que, desde a conclusão de "2001", nunca saiu efetivamente do papel, mesmo tendo um trabalho de pesquisa e de pré-produção extenso e extremamente detalhado. Apenas outros dois projetos foram lançados nos 19 anos seguintes. Os dois últimos trabalhos de Kubrick marcam uma certa junção desses dois elementos de suas produções anteriores - a realidade fantástica e o real pictórico (apresentado em "Barry Lyndon").
Em 1987 ele lançou seu penúltimo filme: "Nascidos para Matar" (em inglês "Full Metal Jacket"). Nesse filme acompanhamos o soldado Davis, apelidado de "Joker" pelo sargento Hartman, em dois períodos diferentes de sua vida militar: durante seu treinamento militar e depois da sua atuação como oficial-jornalista no Corpo de Fuzileiros Navais na cobertura da Guerra do Vietnã. Com uma representação extremamente crítica da guerra (especialmente por tratar-se da infame Guerra do Vietnã), o filme teve um lançamento marcante, muito graças, também, às grandes interpretações de Vincent D'Onofrio e R.Lee Harmey, como o soldado Pyle e o sargento Hartman, respectivamente. O filme foi inteiramente filmado na Inglaterra, incluindo as sequências da guerra, marcando esse processo do diretor de produção de uma realidade "fantástica". Somente um ano depois desse lançamento seria lançado o seu, então, último longa-metragem.
Em 1999 é lançado "De Olhos Bem Fechados", seu último filme. Nele acompanhamos a breve trajetória "delirante" de Bill Harford (interpretado por Tom Cruise) que, após saber dos desejos que sua esposa Alice (interpretada por Nicole Kidman, na época também casada com Tom Cruise na vida real) sentiu por outro home em uma viagem, começa a perder-se cada vez mais em seus pensamentos carregados de ciúmes, que o motivam a entrar em uma série de situações suspeitas e perigosas. Com uma atmosfera enevoada e muito mais semelhante a fabulação de um sonho, o diretor apresenta ao público um mundo inescrupuloso da classe alta de Nova Iorque (cidade que foi construída na Inglaterra para as gravações do filme, com "erros arquitetônicos" propositais para a composição atmosférica dissonante) que existe muito bem escondida dos olhos comuns, por onde o protagonista se vê, ingenuamente, inserido.
Baseado no livro "Breve Romance de Sonho", de Arthur Schnitzler (livro que Kubrick tinha interesse de adaptar desde o início de sua carreira), o longa explora temas como o controle em um relacionamento, as regras não ditas sobre sexo e casamento, a construção da masculinidade e os limites do desejo em relação ao cotidiano. Mesmo sendo lembrado nos dias de hoje com admiração, o longa foi recebido com certa frieza pela imprensa, frieza essa que o próprio diretor não pode testemunhar. Uma semana após terminar a edição final do filme, Kubrick faleceu enquanto dormia por causa de um ataque cardíaco, o que o impediu de presenciar o lançamento do filme que ocorreu somente 4 meses após a sua morte.
Stanley Kubrick faleceu aos 70 anos, em 7 de março de 1999. Teve 3 casamentos, sendo o último com Christiane Kubrick com quem viveu por mais de 40 anos, até o momento da sua morte, e com quem teve 2 de suas 3 filhas. Ele deixou uma das mais importantes e influentes filmografias da história que continua a cativar as novas gerações.
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