Por Rita de Cássia Ibarra
As questões relativas
ao olhar sempre abrem diversas possibilidades, em especial, quando o objeto é o
profissional que dedica sua vida ao olhar, ao “espiar”, ao registrar ou, melhor,
capturar os momentos através do obturador de uma câmera fotográfica,
cinematográfica...
O profissional da imagem é, por excelência, um ladrão especializado em manter para si momentos especiais de outrem. Sua maestria reside em escolher ou ser escolhido pela imagem atraente que se coloca imperativa à sua frente. Esse é o intuito deste texto que tem como objetivo estabelecer uma análise comparativa entre alguns elementos do texto de Julio Cortázar “Las Babas Del Diablo” e do filme de Michelangelo Antonioni “Blow up”, que circula comercialmente no Brasil como “Depois daquele beijo”.
O conto
O texto
de Cortázar inaugura uma nova fase na vida do autor, é repleto de elementos que
muitas vezes não fazem sentido num primeiro contato ou ficam prenhes de
sentidos que podem se diluir, assim como a vida e seus fragmentos se impõem no
cotidiano das pessoas. Sua reflexão tem como tema central o Olhar do
enunciador, suas escolhas e o modo como elas podem afetar a construção de uma
narrativa. Sua incerteza ao escolher a forma de contar seu conto se traduz em
suas primeiras linhas:
Nunca
se sabrá cómo hay que contar
esto, si en primera persona o en segunda, usando la tercera del plural o
inventando continuamente formas que no servirán de nada. Si se pudiera decir:
yo vieron subir la luna, o: nos me duele el fondo de los ojos, y sobre
todo así: tú la mujer rubia eran las nubes que siguen corriendo delante
de mis tus sus nuestros vuestros sus rostros. Qué diablos. CORTAZAR, 1959.
Sua busca pela estética ideal para
narrar sua história se revela como várias facetas de um prisma pelo qual se
pode olhar para um mesmo objeto. Sabe que o ponto de vista para escolher um
enunciador tem função determinante na forma como o leitor irá compreender seu
texto. Insinua sua percepção de que não escreve para si mesmo, que as máquinas,
muitas vezes cultuadas pelos que creem que elas podem trazer perfeição à sua
arte, não têm vida própria e estão longe de traduzir aquilo que se vê, coloca-as
como uma verdadeira armadilha para os sentidos, quando apresenta a
possibilidade de contar a história:
Puestos a contar, si se pudiera ir a beber un bock por ahí y que la máquina siguiera sola (porque escribo a máquina), sería la perfección. Y no es un modo de decir. La perfección, sí, porque aquí el agujero que hay que contar es también una máquina (de otra especie, una Cóntax 1.1.2) y a lo mejor puede ser que una máquina sepa más de otra máquina que yo, tú, ella —la mujer rubia— y las nubes. … Pero de tonto sólo tengo la suerte, y sé que si me voy, esta Rémington se quedará petrificada sobre la mesa con ese aire de doblemente quietas que tienen las cosas movibles cuando no se mueven. CORTAZAR, 1959.
Abre-se à ambiguidade entre a história narrada pela fotografia e a história narrada pela máquina de escrever, vê o seu objeto de descrição como algo morto, petrificado em sua memória e que continuará como uma cena morta do passado, lembranças em sua memória, que pode traí-lo quando iniciar a escrever sobre o fato que o incomoda. Registro de sua máquina fotográfica, que alheia à sua própria percepção capturou aquilo que seu olhar não viu no momento e abriu diversas possibilidades de impressão sobre o momento capturado. Coloca-se diante de suas próprias dúvidas e sabe que se a máquina de escrever for tocada, o registro não estará mais estagnado na foto e sim aberto, para suas múltiplas possibilidades de apreensão do momento roubado de outrem, da ventura ou desventura do outro, que para ele ganha vida... plasma-se, realidade imaginada ou acontecida, ambiguidade que se abre em seu pensamento e se apresenta ao leitor. “...Mejor que sea yo que estoy muerto, que estoy menos comprometido que el resto; yo que no veo más que las nubes y puedo pensar sin distraerme, escribir sin distraerme…” CORTAZAR, 1959
Cortazar ainda justifica sua ânsia em escrever: “… he empezado por esta punta, la de atrás, la del comienzo, que al fin y al cabo es la mejor de las puntas cuando se quiere contar algo.” CORTAZAR, 1959.
A seguir passa a questionar-se do porquê
de sua escolha:
De repente me pregunto por qué tengo que contar esto, pero si uno empezara a preguntarse por qué hace todo lo que hace, si uno se preguntara solamente por qué acepta una invitación a cenar (ahora pasa una paloma, y me parece que un gorrión) o por qué cuando alguien nos ha contado un buen cuento, en seguida empieza como una cosquilla en el estómago y no se está tranquilo hasta entrar en la oficina de al lado y contar a su vez el cuento. CORTAZAR, 1959.
Toma a decisão de contar seu conto e opta finalmente por ordenar como
será contado, acredita que um mínimo de ordem seja necessário apesar de esta
não fazer sentido em algo que ficou no passado e se abriu a diversas
possibilidades de leituras.
Y ya que vamos a contarlo pongamos un poco de orden, bajemos por la escalera de esta casa hasta el domingo 7 de noviembre, justo un mes atrás. Uno baja cinco pisos y ya está en el domingo, con un sol insospechado para noviembre en París, con muchísimas ganas de andar por ahí, de ver cosas, de sacar fotos (porque éramos fotógrafos, soy fotógrafo). CORTAZAR, 1959.
Seu conto ganha ares detetivescos, sua maneira de contar parece remeter
a um roteiro cheio de suspenses, pronto a apresentar um desenlace, que não se materializa
ao leitor e quando se insinua, levanta mais dúvidas que esclarece quanto ao
fato em si. Demonstra ao longo do texto, que por mais que esteja narrando um
fato quem o registrou foi uma máquina, pois é
a máquina que direciona o olhar do fotógrafo, a visão precisa da foto, que pode
mais que o olhar. O registro consegue capturar o que muitas vezes o olhar
jamais veria. Embora toda foto tenha sua oposição entre o que está enquadrado e
o que está fora do quadro e, ser um registro parcial, assim mesmo, muitas vezes
ela captura o que o olho não conseguiu ver.
Michel sabía que el
fotógrafo opera siempre como una permutación de su manera personal de ver el
mundo por otra que la cámara le impone insidiosa (ahora pasa una gran nube casi
negra), pero no desconfiaba, sabedor de que le bastaba salir sin la Contax
para recuperar el tono distraído, la visión sin encuadre, la luz sin diafragma
ni 1/250. CORTAZAR, 1959.
Abre-se ao
questionamento sobre a certeza de que seu olhar treinado de fotógrafo seja preciso,
capaz de capturar quaisquer momentos e os registrar com clareza, mas ao mesmo
tempo crê que os registros fotográficos acabam por resultar falsos, pois sempre é
necessário se escolher entre o que se olha e o que está sendo olhado. Sua
memória do fato está apagada, como as nuvens que passam, de forma mimética ao
longo do texto, mancham o céu de Paris e o afastam de seu trabalho como
tradutor.
Na incerteza entre o que estava obrigado a fazer e o que desejava fazer
utiliza as nuvens como metáfora para suas indecisões. Cada nuvem, carregada ou
leve, lhe traz um novo pensamento e cria a alternância entre o trabalho de
tradução, os registros fotográficos e o desejo de escrever.
O conto se compõe em flash back a partir de seu olhar ao registro fotográfico, nasce o conto, das incertezas de seu olhar, nasce uma nova visão.
O filme
Antonioni
ao adaptar o filme escolhe Londres e não Paris para retratar a história do
conto. O clima cinzento se mantém ao longo de toda a história. O protagonista
passa a ser um fotógrafo profissional de moda, que vive um momento de crise
existencial, com o objetivo de finalizar um livro de fotografias com imagens do
cotidiano.
O
fotógrafo vive entre as fotos profissionais e suas fugas para conseguir as
imagens de seu livro. Busca sempre a perfeição estética em suas fotos
utilizando-se da perspectiva e da luz.
O
filme passa a ideia de que o fotógrafo vive, como a grande maioria dos
artistas, numa sociedade underground, junto de outros artistas e jovens
que querem entrar para o mundo da moda. Vive enfastiado com o seu cotidiano.
O
conflito do fotógrafo é representado pelo seu descaso com as modelos com as
quais ele trabalha, as pessoas ao seu redor são como adereços que ajudam a
compor as fotos que registra.
Busca
tempo para realizar as fotos que lhe causam prazer, demonstra desejos não
realizados, como o representado por seu momento de voyerismo dos
momentos íntimos de seu amigo pintor com a namorada.
Na
película a história do conto tem outra vida. No conto o casal com idades
desiguais se compõe de uma mulher loira mais velha com um jovem rapaz. No filme
a garota é morena e jovem e o homem de meia idade. No primeiro a história se
abre à possível corrupção do rapaz, no segundo o homem é encontrado morto. A
mulher é a constante, a que provoca a situação, o chamariz em ambas as versões.
As
descobertas do escritor-fotógrafo no conto acontecem em seus devaneios entre a
foto e o texto da tradução, do olhar exaustivo à foto abre-se um ponto de vista
ainda não percebido. No filme, o fotógrafo entra em processo de descoberta,
quase obsessiva do detalhe da foto, mas as explosões constantes do negativo o
levam a ter uma foto similar ao quadro produzido por um colega pintor, o
detalhe se apresenta apenas nas diversas sequências de ampliações.
No filme os clowns parecem exercer a função de abertura e encerramento da história, agem dessa forma de maneira similar a um coro grego. Podem ainda trazer a ideia aparentemente esquecida do flash back, pois aparecem a partir do momento em que o fotógrafo age como se fosse um ladrão da imagem dos operários da fábrica e parece contar como foi realizada a foto de seu devaneio com relação à foto do parque. É ainda no parque que o fotógrafo deixa sua máquina ao chão e se dá conta do jogo sem bola dos clowns. Momento em que adere ao jogo da não realidade, que vinha experimentando até essa cena. Ao ouvir o som inexistente assume a proposta do texto de Cortazar. Aqui parece haver uma similaridade com o momento da indecisão de passar ou não ao papel a história a ser contada.
Dois objetos, um olhar.
Apesar
de algumas diferenças entre as duas obras em termos de composição dos cenários
apresentados, ambas são muito comuns e permitem um olhar único sobre os
objetos: o olhar sobre homem e seus conflitos, o artista e suas ânsias, as
realidades não realidades vivenciadas pelo humano em seus momentos de crise.
O conflito entre a experiência vivida e a realidade registrada pela máquina fotográfica. A metáfora da vida que traz tantas incertezas quanto uma foto sobre um momento capturado, que não pertence ao fotógrafo, é de outrem e se apresenta a partir do registro pronto para exibir, o que aparentemente é proibido.
Referências:
Cortazar, Julio. Las Babas del Diablo.
Disponível em: http://biblio3.url.edu.gt/Libros/Cortazar/babas.pdf
- acesso 29/10/2022. (originalmente publicado em 1959).
Antononi, Michelangelo. Blow up. Filme, 1966.
Texto redigido em 2011, enquanto ainda era mestranda do programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Paulista (UNIP), orientanda da Profª Drª Anna Maria Balogh. Trabalho de aproveitamento da disciplina Linguagens Sincréticas em Multimídia, ministrada pelo Prof. Dr. Carlos Geraldo Nascimento.
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